* Profº Dr. Rodrigo Medina Zagni
É certo que as universidades brasileiras, desde a sua criação, padecem do mal identificado por Febvre, ou seja, já nasceram apartadas da sociedade onde se encontram encravadas como torres onde, do alto e bem distantes daqueles que estão em seu entorno, seus senhores olham o mundo ao redor como domínio de suas ciências. Cumprindo o objetivo de abrigar os filhos das aristocracias brancas do séc. XIX, sua função originária segue sendo reafirmada por seus setores mais conservadores, senão no plano político-institucional, nas mentalidades que, vez por outra, transbordam consciências e manifestam-se na condução que determinados senhores dão aos destinos daquilo que, apesar de coisa pública, tratam como domínios seus.
Recentíssimas em relação aos seus antepassados, são herdeiras de permanências que remontam do séc. XI ao XIII, quando as universidades eram ainda novidades no ambiente europeu. Dentre essas permanências, nas universidades brasileiras claramente se percebe a vigência de laços de suserania e vassalagem num universo de trocas comuns entre benefícios e fidelidades que as dotam de caracteres anacronicamente estamentais.
Mas as universidades brasileiras são herdeiras também de outras tradições, tendo nascido fortemente marcadas pelo espírito revolucionário europeu de 1848, a “primavera dos povos” dotou-lhes de aspirações notadamente republicanas, vinculando-se ao moderno ideal de democracia e abrigando entre alunos e professores os propositores mais conscientes das “jovens-nações”. Ambientes de gestação do espírito nacional, logo as universidades se converteriam num dos mais importantes alicerces do Estado-Nação e do ideal democrático de soberania popular.
Ou seja, a universidade, no Brasil, é filha de tradições antagônicas e nasce dividida entre aspirações conflitantes: corte ou república? A díade nos obriga a outros questionamentos: nela, as decisões são colegiadas e democráticas; ou sua condução é senhorial e monocrática? Ou a quem serve a universidade pública no Brasil, às oligarquias ou àqueles que, na luta por soberania popular, têm direito à universidade, mas não têm acesso a ela?
Questionamentos de importância vital, dados os lamentáveis acontecimentos havidos nos últimos dias no Campus Baixada Santista da Universidade Federal de São Paulo.
Entre os dias 24 e 28 de novembro, o campus abrigou as atividades da “II Semana da Consciência Negra: 100 anos de Carolina Maria de Jesus”, realizada pelo “Núcleo de Estudos Reflexos de Palmares” e que contou, em suas atividades, com a participação de uma série de instituições, coletivos e movimentos de luta contra a discriminação racial.
A comunidade externa, integrada à comunidade acadêmica, participou de uma série de atividades artístico-culturais no campus como aquelas promovidas pelos grupos “Netos de Bandim”, “Filhos de Gandhi” e “Carolinas ao Vento”; e discutiu temas como “o negro e a universidade”, “o genocídio da juventude negra”, “religiões de matriz africana”, “mulheres negras e identidade” etc.
Trata-se de temas que precisam, urgentemente, ocupar as nossas reflexões e mover nossas ações na luta por uma universidade socialmente referenciada e encarnada nos problemas daqueles que, efetivamente, subsidiam sua existência.
Como discutir, na universidade, o racismo que acomete a juventude negra se esta, historicamente, vem sendo excluída da universidade? Dentre os alunos, quase não há negros e nos postos mais precários da universidade, sobretudo entre os funcionários terceirizados, quase não há brancos. Entre docentes o corte é ainda mais brutal: no Campus Baixada Santista, num universo de mais de 200 professores, apenas três são negros, proporção parecida com a do Campus Osasco. Uma universidade socialmente referenciada é aquela que chama a sociedade ao seu entorno para ocupar os seus espaços e discutir sobre os seus problemas. E foi para discuti-los que vários grupos, naquela semana, ocuparam o espaço que historicamente foi e vem lhes sendo negado.
E como a direção do campus os acolheu? Ao menos é possível dizer sobre aquilo que fora registrado, em vídeo, por smartphones e por meio de registro de ocorrência policial (isso mesmo!) lavrada pelo 4º Distrito Policial de Santos.
Tendo recebido notícia de que pessoas “estranhas ao campus” encontravam-se no “Laboratório de Informática” fazendo uso de equipamentos, a diretora do campus, acompanhada de dois seguranças, para lá se dirigiu. De acordo com as imagens, a diretora se referiu aos presentes dizendo “isso não é uma lan-house” e que todos aqueles que não portassem identificação de alunos deveriam sair imediatamente. Seis jovens, que faziam uso dos computadores, se levantaram constrangidos e deixaram o local, alguns teriam ido buscar seus documentos de identidade, achando que se os apresentassem poderiam fazer uso do espaço. Ato contínuo, a diretora dirigiu-se às únicas duas jovens negras que ali estavam e solicitou-lhes identificação, por sorte eram alunas e puderam permanecer, mas profundamente ofendidas pelo fato de que outros ali presentes, brancos, não tinham sido solicitados a nada, procedimento que acusaram seletivo.
Situação não apenas constrangedora; mas humilhante para os meninos que haviam sido convidados à universidade para integrarem-se a ela, bem como para as alunas que, sentindo-se discriminadas, registraram ocorrência policial a respeito.
O destrato com a juventude negra, pobre e marginalizada contrasta com o espírito humanista que deveria encarnar a universidade pública.
Que bom seria se esses meninos pudessem ser assistidos por uma universidade capaz de acolhê-los e que, inclusive, lhes fraqueasse o uso de tecnologias como aquelas do laboratório de onde foram expulsos; diga-se de passagem meios fundamentais para o exercício, hoje, de cidadania, em tempos de “cidadania digital”. Mas nunca foram, esses meninos, cidadãos! Recordando os ensinamentos do emérito professor Dalmo de Abreu Dallari, quando apenas alguns são assistidos não há direitos e sim privilégios; logo, não há cidadania. Nunca houve mesmo cidadãos no Brasil, é o que sustentava Milton Santos, intelectual negro que conheceu de perto o racismo nas universidades por onde passou; não seriam esses meninos então os primeiros e lamentavelmente não serão os últimos.
Será preciso escalar as paredes das torres, para que as universidades brasileiras deixem de ser instituições ensimesmadas, estéreis e incapazes de lidar com a diversidade, corroborando práticas históricas de exclusão e perpetuando violências de todo tipo, sobretudo as de classe, raça e gênero.
Trata-se da construção de uma outra academia para uma outra ciência; que não seja torre mas forvm, onde não haja senhores e suas vontades mas democraticamente as vontades de todos, onde não haja ordens manifestas de maneira autoritária mas argumentos dispostos ao dissenso e onde haja, sobretudo, respeito em lugar de condutas assediosas.
Se não nos conformamos com o inaceitável, costumeiramente aceito pelos que obedecem a voz de sua própria conveniência, que sejamos desconformes então pois essa é a única forma de sermos verdadeiramente cientistas, uma vez que, nos lembrara Febvre: “... na origem de qualquer aquisição científica está o não conformismo. Os progressos da Ciência são frutos da discórdia. Como é de heresia que se alimentam, se enriquecem, as religiões.”
Osasco, 8 de dezembro de 2014.
Subscrevem, em apoio,
Prof. Dr. Alberto Handfas
Ciências Econômicas – EPPEN-UNIFESP
Prof. Dr. Daniel Augusto Feldman
Ciências Econômicas – EPPEN-UNIFESP
Profa. Dra. Esther Solano Gallego
Relações Internacionais – EPPEN-UNIFESP
Prof. Dr. Fabio Luis Barbosa dos Santos
Relações Internacionais – EPPEN-UNIFESP
Prof. Dr. João Tristan Vargas
Eixo Comum – EPPEN-UNIFESP
Prof. Dr. Julio Cesar Zorzenon Costa
Ciências Econômicas – EPPEN-UNIFESP
Profa. Dra. Nildes Raimunda Pitombo Leite
Administração – EPPEN-UNIFESP
Prof. Dr. Salvador Andres Schavelzon
Eixo Comum – EPPEN-UNIFESP
* Rodrigo Medina Zagni é docente do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo e repudia a hipocrisia reinante na área educacional brasileira em que impera o discurso de inclusão e universalização do ensino, ao mesmo tempo em que se precariza o sistema educacional público e se nega o ingresso nas universidades públicas aos menos abastados.